A pluralidade das condições de vida das brasileiras dimensiona os desafios para a política de atenção integral à saúde das mulheres. O diálogo com realidades tão diferentes fez da 2ª Conferência Nacional de Saúde das Mulheres (CNSMu), realizada entre os dias 17 e 20 de agosto, um ambiente em que se exercitou o entendimento sobre as necessidades da população feminina que devem nortear as ações do estado. 1265 delegadas/os credenciadas/os participaram do evento no Centro de Convenções Ulysses Guimarães, em Brasília.
Por Ana Claudia Araújo e Clarissa Peixoto
Foram quatro dias em que as diferenças se evidenciaram, seja pelas pautas invisibilizadas trazidas à tona por grupos mais vulneráveis ou pelas dissonâncias em temas como direitos reprodutivos e aborto. Mas a grande maioria das cerca de 300 propostas aprovadas buscam afirmar, além do acesso, a autonomia para o conjunto das mulheres brasileiras, como as que asseguram a liberdade de decisão sobre a contracepção, a garantia do cumprimento da legislação que trata da descriminalização do aborto e o apoio em situação de perdas fetais.
O eixo que tratava das vulnerabilidades nos ciclos de vida foi o que teve o maior número de sugestões ao longo das etapas locais. 108 propostas procuraram acolher as demandas da mais diversas mulheres: lésbicas, negras, trans, ribeirinhas, quilombolas, indígenas, imigrantes, ciganas, do campo, da floresta e das águas, privadas de liberdade, mulheres com deficiência e que vivem com HIV, trabalhadoras urbanas e rurais, jovens e idosas, trabalhadoras formais e informais, moradoras de rua e outras populações femininas.

O direito ao próprio corpo esteve presente em manifestos e palavras de ordem ao longo da CNSMu.
Políticas amplas e necessidades específicas
Mais para as que têm menos e visibilidade para todas as condições em que vivem as brasileiras. A afirmação sintetiza o significado do termo “equidade”, princípio doutrinário do SUS e palavra de ordem da CNSMu, tanto durante o processo mobilizador quanto nos quatro dias da etapa nacional. Elisa Costa, delegada pelo Distrito Federal e representante das mulheres ciganas, acredita que o conceito foi a principal contribuição da conferência. “A inclusão da equidade começa a fazer uma discussão que o Brasil se exime de enxergar, para nós é um divisor de águas”.
Para as ciganas, assim como para outros segmentos de mulheres representandos na CNSMu, o acesso a estrutura de saúde sem discriminação é questão central.
Uma vitória é a portaria 940 que, em 2011, derrubou a exigência de comprovação de residência para populações em situação de itinerância. De acordo com Elisa, que relata discriminação nos postos e hospitais por causa das vestimentas ciganas, a migração da população não é uma escolha, é por conta da expulsão e do preconceito. “Outro problema sério, que aconteceu em Minas Gerais, diz respeito ao parto. A mãe estava tão atordoada por estar sozinha que não conseguia responder as perguntas, foi acionado o conselho tutelar e a criança foi retirada da mãe nas primeiras horas de vida”, relatou.
Trinta anos depois da primeira edição, a 2ª Conferência teve participação marcante das mulheres trans, que lutam pelo acesso à saúde básica. “Provavelmente na primeira não tenhamos tido nenhuma trans e hoje contamos com um coletivo muito significativo”, observou a presidenta da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), Keila Simpson. A baiana, que também participou de uma das mesas que tratou do eixo três, Vulnerabilidades e Equidades, acredita que a conferência ajudou a sensibilizar para as pautas das mulheres trans. “Nós não articulamos em nenhum momento, as meninas apenas foram para os grupos defender o que consideram que é importante pra elas dentro da saúde e as propostas reverberaram muito bem. Talvez tenhamos ajudado a fazer as pessoas abdicarem de olhar somente pro nosso genital e a respeitarem a gente como gênero feminino, como o ser social feminino que somos”.
Dentro do SUS, as mulheres trans lutam pelo reconhecimento do nome social e das condições específicas da sua saúde. “As pessoas não entendem que ao apresentar uma identidade feminina e um registro masculino tem uma contradição e por isso não querem fazer os atendimentos”, explicou.
O trabalho realizado pelas mulheres do Projeto Raízes da África com as detentas de Santa Luzia, presídio de Maceió, permitiu a construção de uma conferência livre em que as demandas da população feminina carcerária foram discutidas. Alagoas foi o único estado a conseguir permissão para que essas mulheres pudessem participar da etapa estadual. No processo de eleição de delegadas, Maria das Dores Miranda, que cumpre pena em liberdade, foi eleita delegada nacional, única a representar o segmento na CNSMu.
“Eu tô representando as femininas do presídio de Santa Luzia e pedindo uma ajuda de melhora pra elas. Elas sofrem lá dentro, ninguém visita, a gente tá lutando pelo menos para as mães verem os filhos. Me sinto muito orgulhosa de representar elas aqui. As pessoas atenderam bem a gente, a comida é boa e é uma responsabilidade grande. Eu gostaria que as pessoas soubessem sobre o que a gente passa. Aqui eu tô tendo um momento de felicidade”, contou.
Delegadas e delegados de diversas partes do país defenderam, na conferência, o direito de acesso das mulheres com deficiência auditiva, visual, motora, mental e portadoras de outras condições especiais. Entre elas, Angela Maria da Silva e Eunice Estêvão. Integrantes de conselhos no Gama/DF, e em João Câmara/RN, denunciaram a falta de insumos e equipamentos necessários para o cuidado da saúde das mulheres com deficiência, como a insuficiência de bolsas coletoras para pessoas que usam cateter, o que vem acarretando enfermidades como infecções e câncer de útero.
“Na cidade em que moro, é preciso se deslocar oitenta quilômetros para procedimentos de alta complexidade. Consegui ir, mas não pude fazer o exame de mamografia, mesmo pagando, porque o aparelho não alcançou a minha mama. Isso é muito constrangedor e nos deixa à mercê”, protestou Eunice.

Plenária Fina da 2ª CNSMu.
Na plenária final da CNSMu, gritos de “demarcação já” reforçaram a pauta da comunidade indígena, defendida por cerca de quarenta mulheres de aldeias de todo o país. Entre elas, a xavante Pascoalina Retari que conheceu, no processo de conferência, mulheres que vivenciam diferentes dificuldades de acesso à saúde nas aldeias. “Na minha aldeia temos pólo de atendimento à saúde indígena e me doeu saber da dificuldade que elas passam quando precisam parir ou fazer o pré-natal”, conta. Estas condições vêm sendo debatidas desde abril, quando ocorreu a Iª Conferência Livre de Saúde das Mulheres Indígenas, preparatória à 2ª CNSMu. “Vi que mulher ainda é discriminada. Eu disse às minhas parentes que não tenham medo de falar das dificuldades porque sangue indígena está correndo. Elas é que sabem das realidades e só com essa união a mulher vai ter mais força”, afirmou.
Descriminalização do aborto
Entre as inúmeras pautas trazidas para o debate nesta segunda edição da CNSMu, a que provocou maior polêmica diz respeito aos direitos reprodutivos. Diversas propostas relacionadas ao tema, distribuídas nos diferentes eixos e que levavam em consideração o direito das mulheres ao aborto nos casos legais e a garantia do atendimento às mulheres que abortam, foram aprovadas ainda nos debates dos grupos. Na plenária final, o debate sobre o tema ficou mais acalorado. Enquanto parte significativa do plenário defendia o direito ao corpo e a uma política de saúde que vise a descriminalização do aborto, um grupo de delegadas e delegados apresentou moção em apoio ao PL 478/07 para criação do estatuto do nascituro, que foi rejeitada por 51% do plenário, após um verdadeiro duelo de palavras de ordem que ecoou pelo centro de eventos.
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