entender o movimento do corpo orienta o olhar para dentro. abrir a porta do sótão, ouvir o ranger das dobradiças, deixar a luz entrar lentamente, remexer nos guardados. antonio não via significado nisso. acreditava no esquecimento. preferia mudar de casa, de trabalho ou de cidade.

não queria lembrar-se do que viveu, sentia-se convicto da sua força e do seu desapego.

a experiência vivida é como um diamante sonoro: imponente e ensurdecedora. registra tudo, deixa marcas no corpo. produz a contratura e a ojeriza. Antonio sofria sem saber. no entanto, agora tudo se apresenta com nitidez. a morte de Lúcio, o amor que não vivera, nada será capaz de fazê-lo superar. as horas não partilhadas agora são pontas de cigarro esmagadas na fuligem do cinzeiro. e uma náusea alucinante o acompanham ao entardecer.

no sótão, as cartas amareladas distanciam Antonio de Lúcio de uma vez por todas. como uma estátua de sal, procura lembrar quando decidiu tirar de si a carne e os ossos, transformando-se em pó. a tez enrugada disseca os anos que ficaram para trás. a dor da morte obriga o corpo a olhar para dentro. preso ao seu calabouço, Antonio deixa a luz entrar lentamente, iluminando a náusea, chão que sustenta a dolorosa flor que acaba de nascer.




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