A suspensão das aulas por conta da crise do coronavírus apresentou uma nova rotina para as famílias com filhos em idade escolar. Pais e mães precisam se revezar entre o trabalho e o cotidiano de crianças e adolescentes, agora confinados em casa.
Por Clarissa Peixoto e Sílvia Medeiros – especial para a Folha da Cidade
A situação é enfrentada pela secretária Bibiana Magnabosco (36), mãe de Marina (12) e Miguel (14), estudantes da rede pública municipal de Florianópolis. “Somos cinco pessoas em casa e como estou no trabalho remoto, não consigo dar toda a atenção necessária para eles. Estou preocupada e sem concentração para pensar em como ajudá-los com o estudo”, diz.
O uso de tecnologias para o ensino à distância é autorizado como complementar às atividades presenciais. Com as aulas suspensas, a preocupação é que os estudantes não percam o ano escolar, mas possam repor o conteúdo de forma organizada, sem prejuízos pedagógicos. As atividades online surgiram como uma possibilidade para manter os estudos nas escolas públicas e, em alguns casos, estabelecimentos privados já estão oferecendo aulas online como forma de repor o calendário letivo.
“Acho importante neste período para a criança não perder a rotina de aprendizado. Mas, nem as escolas, os pais e as próprias crianças estão preparados para este método”. É o que defende a assessora parlamentar Ana Paula de Souza (43), mãe de Lucas (8), que estuda em um colégio particular. “Não acho positivo, a sociabilidade fica nula, a criança precisa ter uma interação social”, complementa.
Andrea Lapa, coordenadora do Programa de Pós-graduação em Educação da UFSC, defende que neste período de confinamento a interação aconteça por meio de canais digitais entre os estudantes, porque a sociabilização é importante para esta etapa de desenvolvimento. A especialista em tecnologias e estudo à distância acredita que este é um momento de adaptação do ensino presencial para alternativas online. “As pessoas estão sendo desafiadas a participar da educação remota. Existe uma grande potencialidade colocada, mas ela precisa ser planejada. O que as escolas estão fazendo é uma virtualidade da educação presencial, não ensino à distância”, explica Lapa.
A Secretaria Municipal de Educação de Florianópolis publicou portaria no dia 3 de abril em que normatiza as atividades não presenciais na rede municipal de educação e prevê treinamentos para preparar professores ao trabalho na rede digital. A Secretaria Estadual de Educação já havia orientado pais e estudantes a utilizar a página de Recursos Digitais de Aprendizagem, elaborada pelos seus técnicos, com atividades, orientações e estímulo à aprendizagem em casa.
Em coletiva nesta segunda-feira (6), o Governo Estadual anunciou que pretende retomar as aulas a partir do dia 22, em sistema de aula online, em casa, com o apoio de materiais impressos para quem não tem acesso à internet, complementados com mensagens SMS e um número 0800 para dúvidas. De acordo com o secretário estadual de educação, Natalino Uggioni, os estudantes precisarão acessar as ferramentas online. Aqueles que não tiverem acesso à internet poderão retirar apostilas e materiais pedagógicos nas unidades de educação. No entanto, não esclareceu se a prática online deve ser obrigatória, com o envio de atividades pelas plataformas.
Barreiras digitais
O acesso à internet não é a única barreira para as famílias. A maioria dos estudantes não têm computador em casa e algumas das plataformas não são adaptadas para uso no aparelho telefônico. Segundo pesquisa do IBGE em 2017, o celular é o principal meio de acesso à internet para 98,7% dos usuários. “Meus filhos não têm computador, acessam a internet somente pelo celular. Não sabemos como vai funcionar se tiverem as aulas online”, reforça Bibiana.
A desigualdade é fator preponderante para pensar respostas à crise instaurada pelo coronavírus. Desenvolver estratégias de reposição do calendário escolar requer considerar as diversas formas de organização familiar e seus possíveis recursos técnicos, econômicos e sociais. A esse respeito, um dado importante foi levantado pela Secretaria Estadual de Educação: 42% dos estudantes da rede pública estadual não possuem acesso a computadores e 12% não tem acesso à internet.
A situação é mais drástica para Iapoti Severo Coelho (35). O filho Diogo (9) é estudante bolsista de uma escola na comunidade do Monte Serrat, no Maciço do Morro da Cruz, em Florianópolis. A mãe tem recebido atividades da escola, no entanto a família não dispõe de recursos para o acesso “Com o meu celular eu não consigo abrir, é preciso entrar em sites e com o meu aparelho não consigo. Vou precisar falar com a escola pra saber se eles não fazem alguma coisa a mão, por que ele está perdendo a matéria que eles estão mandando”, relata.
Iapoti afirma que a família tem outras prioridades do que o acesso a internet. “Sou autônoma, trabalho vendendo coisas, de vez em quando vendo alimentos, às vezes faço unha, também faço faxina. Com esse vírus, tudo fica mais difícil”.
O especialista em educação e professor aposentado da Unicamp, Luiz Carlos de Freitas, fala que é preciso que os gestores levem em consideração a realidade em que estão vivendo as famílias e estudantes. “Não adianta teorias de como remediar se não levarmos em conta os fatos. As famílias não têm tranquilidade, nem estão numa situação adequada para reagir. As crianças estão perdendo entes queridos, os pais estão com dificuldades econômicas, transferir a eles a responsabilidade e a sequência dos dias letivos é injusto”, reflete Freitas.
Na opinião do especialista, é preciso entender o momento atual não como um problema técnico, mas como um momento que envolve também emoção e afetividade. “As crianças estão vivendo uma situação extremamente difícil. Então é preciso ter um espaço para discutir com elas, para que assimilem tudo isso e retornem às atividades aos poucos”, argumenta.
Homeschooling
O passo a frente que se pretende dar com práticas de ensino a distância no período de crise do coronavírus reacende o debate em torno da prática de homeschooling, uma modalidade de ensino em que os pais se responsabilizam pela educação formal dos filhos, com aulas em casa.
A proposta de implementação da prática no sistema de educação brasileiro é discutida desde 1994 e tomou novo fôlego nas eleições de 2018. Há 25 anos tramitam projetos no Congresso Nacional que pedem a regulamentação do modelo educacional. O tema é polêmico e resultou em seis propostas legislativas arquivadas. Atualmente, tramitam cinco projetos, o mais recente proposto pelo Governo Federal em 2019.
Em Santa Catarina, o homeschooling chegou à Assembleia Legislativa através do projeto de lei complementar 3/2019, de autoria do deputado Bruno Souza (NOVO), que propõe a regulamentação da prática no estado. A proposta está sob análise da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ).
Para Freitas, esse é um momento de responsabilidade dos gestores públicos que não devem transferir para as famílias o processo de aprendizagem dos estudantes.”Não é o momento para se discutir a eficácia do homeschooling ou do EaD [ensino à distância]. Há uma crise e precisamos enxergar alguma forma de se chegar às famílias e como encaminhar todo o período letivo. É preciso pensar um novo ciclo de aprendizagem. Diferente disso, corre-se o risco de prejudicar uma geração inteira”, argumenta.
Andrea acredita na transformação. “Não podemos ignorar o que está acontecendo neste momento e continuar a dar aula de história, geografia e matemática, sem olhar para o que estamos vivendo. Acredito que vamos sair desta pandemia repensando a educação como um todo”. A professora reforça que é preciso pensar neste momento como uma exceção. “Precisamos ser tolerantes com as crianças e com os professores. Não fizemos uma opção pelo ensino à distância, mas estamos sendo obrigados a pensar sobre isso. Para que se torne uma regra será preciso muito debate coletivo”, reflete.
Reportagem publicada no Folha da Cidade em 08/04/2020.
Comments fornecido por CComment