o silêncio pela casa se movimentava como o vento nas cortinas. nada parecia ter sobrado de pé, era só poeira que a janela aberta deixou entrar durante o vendaval. a solidão era como uma voz rouca, envelhecida com o tempo e sem coragem para gritar. dois corpos perdidos, como viajantes nômade, ali a espera de algo que, sabem, nunca vão encontrar. a vida é desenfreada, não volta para ninguém. se pudessem impedir a barbárie, ter de volta as manhãs dos primeiros dias naquela casa, quem seria mesmo capaz de fazê-lo? o arrependimento só existe na decisão petrificada no passado.

tudo que ficou para trás embrutecera os dois e, pela frente, sobreviver era a punição. a traição e a morte do filho, mas também o menor gesto insensato diante do que não se pode conter. a dor a conta gotas é mais lancinante que as grandes tragédias. uma exige um esforço instantâneo para suportar a fatalidade, ilumina o caos. permite o vômito imediato. a outra é como cozinhar lentamente: a água vai aquecendo enquanto o corpo derrete por dentro. a náusea, o tédio, a angústia. o choro contido.

pílulas de desinteresse diário pela vida. foi assim que tudo começou. laura não podia suportar que alberto se desinteressasse tanto. fez de tudo para atrapalhar a fadiga de alberto. massagem cardíaca, respiração boca a boca. em vão. era evidente o gosto que ele tinha tomado pela amargura e era insuportável também que, embora ela pudesse se culpar por isso, a vida que batia descompassada e sem sentido era a dele.

buscou enfrentar a tristeza e o abandono. tinha um ímpeto de vida que não podia controlar. não era o seu corpo ou as suas palavras que fustigavam alberto; era ele quem não suportava olhar para a vida que pulsava para fora, um medo de se entregar ao imponderável, uma sensação de decadência, um estado de quase morte que arrancava dele raiva e frustração. estava enfastiado, cabisbaixo, talvez porque tenha se dado conta do pouco que tinha a oferecer à vida ou porque, para si, a vida havia reservado pouco. limitado em suas crenças, ferido e intempestivo, não suportava algo além de si e das fantasias que cultivava, mas não era capaz de admitir diante da sua imagem contorcida no espelho.

laura traiu alberto. trair no sentido mais misógino da palavra. como se antes disso alberto não a tivesse abandonado. o silêncio, o desinteresse, a humilhação. uma inveja da vida que laura suportava reinventar na esperança de um pequeno ato do inusitado; no gesto molecular de quem aceita o que não se explica e também não se obriga a explicações. mas, um corpo que busca um conforto não encontra perdão. a honra é algo que se sobrepõe ao direito do corpo de gritar. um moralismo sobrevivente. alberto, infeliz, morto por dentro, impelindo laura a morrer junto com ele. como quem enterra consigo seus pertences, saiu de casa cheio de si, ligou o carro, deu a partida, atropelou a família, esmagou a criança.

nunca mais viveu, já não o fazia. apagou a luz da casa. o silêncio penetrante é compartilhado sem a esperança de laura, na amargura de alberto. o dia de sol é sempre insuportável e queima como a ponta de lança fumegante que atravessa a roupa, o corpo e o tempo. a falta de interesse pela vida matou tudo: a mulher, a criança, a família, a honra, o instante irrepetível. há uma névoa fosca pela casa. um silêncio embrutecido e triste que sopra como o vento na cortina. a casa empoeirada, o olhar perdido de laura, a culpa milagrosa de alberto. a falta do olhar para dentro que fustigou a vida e que ainda tem quem chame de amor.


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