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tenho vivido esses dias
como se tivesse tomado
anestesia na gengiva
a carne dentro da boca
toda mordida sem doer
depois formiga tudo e dói
a mucosa despedaçada
e uma pressão que dá vontade
de morder, chorar, morrer
tenho vivido esses dias
como se tivesse tomado
anestesia na gengiva
a carne dentro da boca
toda mordida sem doer
depois formiga tudo e dói
a mucosa despedaçada
e uma pressão que dá vontade
de morder, chorar, morrer
a vida é um cavalo de batalha intercalando piqueniques e festas de aniversário. é noite de tempestade esperando tardes ensolaradas e mergulhos no mar gelado. eu acho que ela pode ficar um pouco menos complexa quando a gente aceita ouvir as vozes invisíveis que falam de dentro pra fora.
a interlocução pra dentro de si compromete a gente, mas também liberta do orgulho (ou pelo menos tenta). enquanto se é cética consigo mesma, há sempre um traço de imaturidade e soberba que nos leva a uma revolta desmedida. bom mesmo é ir entendendo as coisas em conjunto. mundo lá fora, mundo aqui dentro; tempestade e piquenique.
essa conexão é bem mais sutil do que crenças em deus ou nos astros. há um ser sociológico solitário, individualista, dentro da gente que interage com aquilo que a gente é e nem sabe. às vezes, temos vergonha de assumi-lo (o moralismo berra no nosso ouvido); outras temos medo de aceitar as nossas fragilidades (mas, todas continuam ali, pra quem quiser ver!).
eu gosto de dar o tal mergulho na água salgada e gelada: o olho arde, o corpo treme, mas abre os brônquios, faz a gente respirar de novo.
há duas ou três semanas, comecei a retomar um lugar na rua. sempre fui dali. a praia, o carnaval, o protesto, o boteco, o jornalismo. sou andarilha e gosto de gente. viver trancafiada nunca foi pra mim. o isolamento foi difícil e me levou a desconfiar dessa minha identidade. mas, nos últimos dias, fui retomando esse meu lugar na rua e repactuando a vida comigo mesma. revi tanta gente amorosa, essa galeragem que eu sempre tive e sempre fiz questão de ter. sei que há entre nós muita angústia, um certo medo de aglomerar que é mais do que uma medida sanitária. mas, há também uma chance de se construir algo novo quando voltamos a estar juntos. é preciso, talvez, um pouco de complacência com o outro, uma certa disposição. e nada melhor do que a rua para nos fazer hábeis a lidar com a vida coletiva, expandindo as fronteiras desse individualismo que nos consome. voltar pra rua e reconhecer as amizades me traz um consolo e me relembra de quem eu sou. a vida é boa!
os dias, todos, podiam ser uma manhã de sábado. sol esfumaçado, gosto de café. meia dúzia de tragadas esverdeadas soprando ideias que esfumaçam ainda mais o amarelo do sol. pelas ruas, canções de gás e detergente que saltam de caminhões solitários. os dias todos manhã de sábado, revelando meninas que empinam pipas e meninos que choram no colo das mães. manhã de calor suave, com a pressa de chegar e a tarde toda pra sair.
as noites, todas, podiam ser uma noite de outono. bruminha leve e fria pingando na têmpora e nos joelhos. gosto de chiclete de menta jogando conversa fora. pelos becos, gargalhadas altas e olhares atentos a procurar vestígios depois de mais uma rodada de desesperanças. as noites todas, noite de outono, apresentando meninas que não têm medo e meninos que voltam chorosos para o colo das mães. noite de frio ameno, sem pressa de acabar e sem inverno a perseguir.