o propósito da vida talvez não tenha a ver com descobri-lo, mas aceitá-lo como um desconhecido e suportá-lo enquanto ausência. essa é uma divagação que a gente já deve ter lido por aí. mas mesmo uma frase ordinária pode esconder da gente um desconhecido contido em nossas certezas, julgamentos ou insatisfações. um discurso sutil que nos desloca sem nos tirar do lugar. 

às vezes, vamos construindo uma ideia sobre o outro para justificar a nossa própria convicção ou sanidade. uma ilusão para suportar a ausência daquilo que se desconhece. não sei, mas parece que deixar o estranhamento acontecer diante da falta pode ser menos sofrido do que se preencher com culpa ou pena de si mesma. sei lá, tem gente que gosta de comida enlatada. tem gente que nem tem o que comer. a ausência é.

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o mundo está cheio de desesperança

duvidar de si ou se autoelogiar numa rede

dividem a mesma mentalidade do tempo:

um eu sem memória flutua

ante uma pílula do dia seguinte 

 

há carroceiros da morte

que empilham corpos em selvas urbanas

e em florestas tropicais

tudo é lixo cósmico, no fim das contas

no fim da vida, tudo é a mesma coisa

 

são entranhas invisíveis

de onde se vê brotar

um oceano lamurioso

repetindo mantras de grifes até as dez da noite

 

arde os olhos como luzes de natal

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o cotidiano é um fundo de quintal com casca de laranja enterrada e um cachorro papa-ovo deitado numa toalha de banho velha. uma tarde de sol de inverno enquanto o pai lê um livro de Bang-bang deitado na grama. a mãe é uma estátua de mármore amassando pão com um turbante vermelho na cabeça. quem poderia imaginar um dia sequer sem a intolerância do dia a dia, repetitivo, egoico e cheirando a água salobra. tem aroma mais inventado que cheiro de praia? dizem que a memória é de protetor solar ou de milho verde. mas, é de musgo. e resto de peixe carcomido por gatos degradados e famintos.

narrar uma história quem sabe fosse somente pensar isso mesmo. a imagem de quem vive onde e as infinitas representações disso e daquilo. talvez um conto seja só a memória ou um pensamento instantâneo. em um cenário qualquer, um ninguém ante um fluxo do pensamento sem começo nem fim; um ir e vir de palavras secularmente significadas; instaladas lá dentro sabe-se lá como: um filme, um livro, um desenho animado, um cotidiano com o pai de mármore e a mãe que lê e se odeia.

se tiver que dar sentido a escrita como se faz com cada coisa que vira palavra eu simplesmente não quero mais escrever.

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Era dos poucos excelentes no jornalismo de esquerda e sindical. Do Brasil. Ativista. Sempre posicionado, sempre mantendo abertas as interlocuções. Muito menos esquerda liberal que muita gente "revolucionária". Aprendeu sobre racismo e machismo na carne. Soube bater, mas também soube apanhar. Radical sem ser ingênuo. 

No jornalismo, nasceu também o amigo. Não tinha pressa nem preguiça de ensinar. Dava esporro suave. Já pra aceitar o argumento, precisava de uma boa sessão discursiva: "só pra gente se entender melhor!" No grupinho, sabia bem entender as divergências sem se exceder. "Deixa disso, vem pra cá, neném! Nhéééééé, manda trabalho, pufavô!" Fazia, enfim, o seu papel como ninguém. Foi a melhor pessoa com quem eu já trabalhei nessa vida. 

Eu que sou rebelde e, de antemão, já acho que homem vai ser escroto, tive que engolir o Frank Maia. Como bom brother, organizou minha melhor festinha de fossa; foi um feriado memorável. Tinha hábitos marginais como os meus, já cuidou da minha filha enquanto eu tomava um trago e dizia pra eu escrever um livro. Ilustrou meus textos. Opinou sobre o meu trabalho e as minhas ideias. Me encorajou e me respeitou.

Eu tenho, enfim, muito privilégio nessa vida, entre os quais, ter compartilhado com o Frank uma amizade conectada em nossas visões de mundo sobre política, esquerda, jornalismo, arte, vida cotidiana. Saudades de ti, Frank! Obrigada por tudo, amigo querido!

 

insuportável é mesmo o cotidiano 

e tudo que vem depois 

porque o vivido já se cristalizou 

 

gota de memória 

que atravessa o tempo 

blindada pela força do que significa

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