o cotidiano é um fundo de quintal com casca de laranja enterrada e um cachorro papa-ovo deitado numa toalha de banho velha. uma tarde de sol de inverno enquanto o pai lê um livro de Bang-bang deitado na grama. a mãe é uma estátua de mármore amassando pão com um turbante vermelho na cabeça. quem poderia imaginar um dia sequer sem a intolerância do dia a dia, repetitivo, egoico e cheirando a água salobra. tem aroma mais inventado que cheiro de praia? dizem que a memória é de protetor solar ou de milho verde. mas, é de musgo. e resto de peixe carcomido por gatos degradados e famintos.

narrar uma história quem sabe fosse somente pensar isso mesmo. a imagem de quem vive onde e as infinitas representações disso e daquilo. talvez um conto seja só a memória ou um pensamento instantâneo. em um cenário qualquer, um ninguém ante um fluxo do pensamento sem começo nem fim; um ir e vir de palavras secularmente significadas; instaladas lá dentro sabe-se lá como: um filme, um livro, um desenho animado, um cotidiano com o pai de mármore e a mãe que lê e se odeia.

se tiver que dar sentido a escrita como se faz com cada coisa que vira palavra eu simplesmente não quero mais escrever.

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Era dos poucos excelentes no jornalismo de esquerda e sindical. Do Brasil. Ativista. Sempre posicionado, sempre mantendo abertas as interlocuções. Muito menos esquerda liberal que muita gente "revolucionária". Aprendeu sobre racismo e machismo na carne. Soube bater, mas também soube apanhar. Radical sem ser ingênuo. 

No jornalismo, nasceu também o amigo. Não tinha pressa nem preguiça de ensinar. Dava esporro suave. Já pra aceitar o argumento, precisava de uma boa sessão discursiva: "só pra gente se entender melhor!" No grupinho, sabia bem entender as divergências sem se exceder. "Deixa disso, vem pra cá, neném! Nhéééééé, manda trabalho, pufavô!" Fazia, enfim, o seu papel como ninguém. Foi a melhor pessoa com quem eu já trabalhei nessa vida. 

Eu que sou rebelde e, de antemão, já acho que homem vai ser escroto, tive que engolir o Frank Maia. Como bom brother, organizou minha melhor festinha de fossa; foi um feriado memorável. Tinha hábitos marginais como os meus, já cuidou da minha filha enquanto eu tomava um trago e dizia pra eu escrever um livro. Ilustrou meus textos. Opinou sobre o meu trabalho e as minhas ideias. Me encorajou e me respeitou.

Eu tenho, enfim, muito privilégio nessa vida, entre os quais, ter compartilhado com o Frank uma amizade conectada em nossas visões de mundo sobre política, esquerda, jornalismo, arte, vida cotidiana. Saudades de ti, Frank! Obrigada por tudo, amigo querido!

 

insuportável é mesmo o cotidiano 

e tudo que vem depois 

porque o vivido já se cristalizou 

 

gota de memória 

que atravessa o tempo 

blindada pela força do que significa

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o tom cinza da semana dá a exata gradação da tristeza desses dias. o vento rude desfolhando as árvores que contrastam com o céu do fim de tarde. a chuva incontornável que afoga a ínfima vontade de sorrir.

tenho o privilégio, ao menos, de escrever enquanto isso.

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precisamos cuidar da nossa própria vida; este é o lema, de fato. o ser humano se individualizou tanto que, por certo, sempre tem mais com o que se preocupar quando o limite é o muro ou a parede que separa a vizinhança. pressa, estresse, angústia.

acenamos positivamente para a importância desse eu mimado e consumista; chegamos a nos vangloriar de uma sociedade que nos "permite sermos nós mesmos". na contradição, nos mantemos parte das hordas humanas que têm a força de trabalho como único meio de sobrevivência. nenhuma ilusão consumista pode ser acessada sem crédito.

no fim das contas, ainda somos quem proleta (reproduzindo mão de obra excedente para o sistema e trabalhando para sustentá-la, porque a célula familiar é o que importa). acreditamos mais nas diferenças entre nós do que nas semelhanças. não fomos capazes de fazer nada por nós mesmos e nem por ninguém. parece, talvez, diante de toda essa euforia positiva do eu, que compomos um conjunto disforme caminhando para o seu fim.

 

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