combinavam. sabiam tudo de si e até um pouco mais, embora isso sempre seja uma ilusão. os dias de verão cintilavam, era quase impossível reconhecer dois corpos a certa distância. não que não soubessem manter um limite do amor próprio, mas formavam uma presença indelevelmente única. quase como uma esfinge, inabalável, que sabemos, é também um mito.

há coisas na vida que são abruptas, deixam a carne marcada e fazem tremer os ossos. nesse enredo não. foi como um conta-gotas que de repente esvazia o frasco. nas paredes de vidro ficam as sobras, o cheiro que penetra a memória, paralisa, retorna ao movimento repetido. a linha que contorna o descontentamento sempre é nítida. difícil é se dar conta da repetição passiva e reconfortante, um gozo autocentrado ressentido que só aparece com a nova incompletude. 

despediram-se longamente, como quem tem medo do inevitável. um apego à permanência de rasgar as vísceras. mas a consciência é coisa que só se revela na solidão. a mesmice atormenta tanto quanto o imprevisto de qualquer manhã seguinte. suportar a perda, fazer o luto de si, recomeçar. 

ainda combinavam, mas a menor distância entre os dois corpos precisava se expandir. a solidez só se completa na impermanência. remodelar o corpo para uma nova jornada. tudo se perdera, enfim, para que fosse possível um novo encontro em outra dimensão.

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tento me divertir para esquecer que sou triste. essa verdade que tudo se faz para esconder, mas que bem no fundo do olho é capaz de se notar. é um brilho difuso que ilumina para fora enquanto bloqueia a luz para o lado de dentro. a minha tristeza se instituiu na memória quando eu ainda nem supunha ser e foi se aprofundando com as tantas afirmações da desilusão. passo muito tempo sem chorar, como uma oportunidade que se perdeu diante desse vazio inconstante. sou triste e tento esquecer com alegria agora e depois de amanhã, em um ritmo que não suporta o silêncio e o ócio. uma solidão que embrutece e me obrigada a me misturar com tudo ao meu redor, só gozo. acho que por isso interajo tanto. ouço todo tipo de música, dialogo com qualquer ambiente, ocasião ou pessoa, me disciplino para múltiplas habilidades. me afeto com tudo, me embriago desse todo volumoso, mas o faço para me cansar, para que seja possível esquecer dessa tristeza sem nome que fez do meu corpo morada. sofro com cada desilusão como se fosse a primeira vez sem me dar conta que tudo é uma repetição da contratura de origem; não tenho crença, não respeito bulas e cartilhas, não me submeto. sigo, no entanto, empinando a cabeça como quem cavalga pelo universo fingindo a força que não tem. carrego comigo os restos das jornadas incompletas que deixei para trás. me desespero com o tempo que passou e me angustio em perceber o tanto que ainda estar por vir. apesar de tudo, me visto para o novo dia, aceito a perda e volto para o meu caminho em busca de algo inusitado: o deslumbramento em torno daquilo que se pode construir nas incertezas. vivo pelo pequeno momento em que algo imprevisível aconteça e me faça elaborar novas rotas. a tristeza é parte importante, mas não é a única a me constituir.

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as palavras vacilam na boca sem o menor compromisso de voltar. cantam, assim, coisas que não querem dizer como se o não não fosse uma forma de negar o desejo. as palavras batem asas na garganta desobstruindo o caminho para as outras que virão. dançam sem pensar até formar um imponderável dizível em teus lábios. as palavras cospem tudo que não se pode negar e desalinham as margens, essas fronteiras mal talhadas que se assemelham às limitações que nos esforçamos por disfarçar: rio de vontades suprimidas fluindo não se sabe para onde. as palavras apenas desaguam como afluentes desesperados diante do que é possível dizer. rasgam o silêncio sem promessas, deixando para trás o que não se pode conter.

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Escrever tem sido um ato mais introspectivo do que político. Tenho me permitido dar mais importância a uma escrita "molecular". Não que eu tenha sucumbido de vez ao individualismo. Tentar compreender o que está acontecendo com a humanidade e fazer alguma coisa com isso ainda é a referência. No entanto, toda essa gritaria parece fustigar qualquer efeito possível das razões coletivas. Sobra muito pedantismo enquanto falta humildade. Ouço e leio pessoas se expressando desesperadas, tentando provar pra si mesmas que têm razão. O outro é sempre uma fronteira deformada, um inimigo em expansão.

Por isso, tenho escrito mais sobre sensações do que tentado conjecturar pela palavra. Talvez reconhecer esse eu machucado pela solidão e pelo pessimismo de nosso tempo possa ser a chave para encontrarmos novos elos coletivos, com mais sutileza e menos prepotência discursiva. Tenho tentado entender o que é possível no silêncio das palavras não publicadas, sussurradas de modo que o meu jeito lento possa dar conta de internalizar. Sem a brutalidade de quem se exige respostas. 

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