Um amigo me enviou uma crônica na manhã de domingo. Eu tenho esse tipo de sorte: curadores atentos me fazem feliz apenas por sensibilidade. O texto tinha a ver com uma conversa da madrugada anterior em que eu dizia não acreditar em muitas coisas, enquanto a amiga interlocutora estava convencida sobre alguma comunicação "entre céu e terra". Eu não. Não tenho fé, assim como não gosto de cultos a personalidades e também sou avessa aos deslumbramentos que não sejam por paisagens naturais, ou claro, boas conversas e uma comida ou bebida saborosas.

A crônica enviada pelo amigo no domingo de manhã trazia consigo uma possibilidade: uma escrita passível de me deslumbrar. "Rir. Nadar. Cozinhar para os amigos. Dançar", dizia em tom de alívio. Talvez, eu diria também, que há um doce deslumbre em ouvir um bom instrumental, escrever uma poesia, apreciar a arte sem indústria, andar pela contramão em tempos de ódio e ignorância. Ter com quem contar. Ainda escrevermos a lápis em um bloco de notas. Ter coragem de viver para amar uma filha, um gato ou um banho num mar revolto e longe de casa. Da pra se deslumbrar com pouco e esperar o fim sem se lamentar tanto. Acho que está nisso o aprendizado dos últimos tempos.

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às vezes, nem posso acreditar em quem eu sou, talvez porque meu corpo pareça ter sido muitos ao mesmo tempo que tudo parece ter começado só hoje pela manhã. empilhadas umas sobre as outras - toda essa gente lá fora -, umas vomitando de tanto se envenenar, outras que colocam um tampão no umbigo. às vezes, é de perder a vontade de habitar o mesmo mundo, hordas de deslumbrados prosperando como a fome na guerra. é difícil lembrar que eu até já escrevi uma carta para um pássaro, um anjo ou até cantei no coro infantil. como pode a menina sempre ser a mesma ainda que desiludida. como ter certeza de alguma coisa quando o mundo se esfacela bem debaixo dos pés de toda a ignorância, dessa montanha verde e iluminada que ainda nos serve de consolo. olhando de cima parece que falta pouco para chegarmos a este não-lugar onde os sentidos desbotam deixando turvo o olhar de quem ainda acorda, lê um livro e toma café. agora apenas somos nós, marchando pelas avenidas motorizadas, zumbis desesperados vagando em busca do salário mensal. eu tenho pena de vocês, mas até menos do que já tive de mim mesma, ou pior, de quem ainda nem chegou. procriar é a pior maneira de errar com o outro que está por vir, essa é a culpa invariável da mãe. um dia, quem sabe, a paz deixe de ser uma placenta e se torne a última criança entre toda essa gente que ainda insistimos ser.

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uma órfã de palavras

bastardo, o sentido sem argumento

apenas um desnível

em que a língua

nem precisa mais estar aqui

as letras de uma literatura trêmula

que batem asas

no compasso de um frame

a luz que resseca a retina

um tempo sobre o cadafalso

aquilo que olha e que vê

e lá se vão

olhos pele musculatura

o dó de si mesma ou

uma nova tentativa de se repetir

pela desimportância do que quer que seja

nascer e morrer de novo é sempre simples assim.

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Voltava sempre a conversar com galhos secos na esperança que o dia pudesse permanecer intacto; nada que trouxesse a esperança de uma bandeira gloriosa, faiscante, hasteada a um palmo do nariz. Às vezes, era possível realizar-se assim, em um pequeno almoço entediante, sentada à mesa entre árvores estéreis. Mas, tudo não passava de vigília, uma noite mal dormida que se fazia cotidiana. Nada era capaz de equivaler-se ao desejo de imergir em águas turvas que gerassem caos. Mantinha-se embriagada pelo tédio que atravessa essa floresta noturna e descansável, enquanto esperava por tempestades tortuosas no escuro. O onírico é sempre uma forma de pedir socorro.

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