Um vazio que se completa na oposta sensação de transbordar, como fosse essa chuva que nos despreza inundando tudo. É como perder, outra vez, alguma coisa que sempre nos faltou e, enfim, nem saber que algo é esse que se perdeu. A raiva triangulada com uma tristeza vertiginosa e essa esperança adocicada que só gera comoção. O tédio, o cansaço, a ideia carrancuda de que o tempo pode mesmo ser mensurado com pele, músculo, sangue e osso. A respiração ofegante contida numa risada embriagada, cheia de vontade de sobrevoar a costa e o milharal, como fosse uma ou outra ancestral bruxólica, daquelas mulheres que lavavam roupas nas fontes d'água e pilotavam vassouras sob o céu. É quase como abstinência: precisa resistir às primeiras horas e aos dias seguintes e deixar que tudo se mova lenta e ordinariamente. O sentimento racionalizado só radicaliza a fantasia. Viver é preciso, mesmo que já tenhamos chegado ao fim. Mudar a ideia, a rota e as certezas, mesmo que o medo seja a alavanca de uma vida inteira.

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a ingenuidade é uma palavra que me cerca. não sei se me sinto ingênua ou se não suporto os ingênuos. ou se as duas sensações me perseguem. às vezes, é como se a ingenuidade fosse um suco batido pela mãe, às quatro da tarde, regando as crianças sedentas no quintal; ou como se ela se estirasse por toda a faixa de areia de uma vida inteira percorrida bem devagarinho. a ingenuidade é previsível e entediante como essa oração anterior. os ingênuos têm uma convicção alegre (às vezes, fervorosa) de quem acaba de se converter: emocionam, mas não servem pra muito. a ingenuidade é comovente, acende uma esperança no aqui e no agora, incensando toda a coisa ruim que vem da realidade. é o lar de uma confiança adocicada que me apetece tanto quanto me dá náuseas. como um bolo com muito açúcar e gordura hidrogenada que é prazeroso só na primeira garfada. é um conforto imediato pra quem ainda precisa acreditar.

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as palavras absolutas inexistem. sempre estão a revelar um estado do agora sem permanências que as cerquem. mais que isso, tentam fazer do agora alguma coisa que ele nem mesmo é. as palavras gravam na história algo que nunca dimensiona com precisão um ato ou um espírito do tempo. amor, encontro, comoção, guerra, violência, solidão: palavras que significam tanto, mas se perdem ao expressar o que acontece nas camadas mais profundas de qualquer um de nós. as palavras são insuficientes para contar sobre a jornada de uma vida inteira ou mesmo para registrar este instante em que elas saltam da tua boca. são incapazes de dizer a verdade que nos esforçamos para (não) enxergar. escolhemos cada palavra na tentativa de nos escondermos de nós mesmos. as palavras são um disfarce; o silêncio delas, sim, dizem tudo que precisamos saber.

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um imenso cansaço toma conta da cidade. as paredes não aguentam mais ouvir as lamúrias de tantos eus individualizados, preocupados com a invenção de si mesmos nas redes sociais. o concreto queima como brasa, cozinhando os corpos que não param de acelerar: uma ansiedade audível tanto quanto as buzinas dos carros que se amontoam nos cruzamentos. as portas abertas são as do consumo. as casas deixaram de existir. o espaço é consumido por estacionamentos e gás carbônico. a água à beiramar cheira à mijo e detergente. jovenzinhos de dinastia nenhuma circulam ingenuamente pelas margens mais especuladas; o sol já está a pino e a cidade se sente dourada apesar de ter cor cinza vertical. caminhamos por uma selva de pedras onde não há uma caverna sequer em que a gente possa se proteger. as paisagens exuberantes são ilusões cotadas pelo dólar. o verão vem chegando e hordas hospedeiras se movimentam não para conhecer o outro ausente em seu território, mas para explorar o que sobrou de natural e humano. a cidade parece verde, mas é incolor. invisível, está entregue à cultura da especulação e de beach clubs que exalam sexo forçado. a cidade é mesmo a grande ilusão de todos os tempos.

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