as palavras absolutas inexistem. sempre estão a revelar um estado do agora sem permanências que as cerquem. mais que isso, tentam fazer do agora alguma coisa que ele nem mesmo é. as palavras gravam na história algo que nunca dimensiona com precisão um ato ou um espírito do tempo. amor, encontro, comoção, guerra, violência, solidão: palavras que significam tanto, mas se perdem ao expressar o que acontece nas camadas mais profundas de qualquer um de nós. as palavras são insuficientes para contar sobre a jornada de uma vida inteira ou mesmo para registrar este instante em que elas saltam da tua boca. são incapazes de dizer a verdade que nos esforçamos para (não) enxergar. escolhemos cada palavra na tentativa de nos escondermos de nós mesmos. as palavras são um disfarce; o silêncio delas, sim, dizem tudo que precisamos saber.

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um imenso cansaço toma conta da cidade. as paredes não aguentam mais ouvir as lamúrias de tantos eus individualizados, preocupados com a invenção de si mesmos nas redes sociais. o concreto queima como brasa, cozinhando os corpos que não param de acelerar: uma ansiedade audível tanto quanto as buzinas dos carros que se amontoam nos cruzamentos. as portas abertas são as do consumo. as casas deixaram de existir. o espaço é consumido por estacionamentos e gás carbônico. a água à beiramar cheira à mijo e detergente. jovenzinhos de dinastia nenhuma circulam ingenuamente pelas margens mais especuladas; o sol já está a pino e a cidade se sente dourada apesar de ter cor cinza vertical. caminhamos por uma selva de pedras onde não há uma caverna sequer em que a gente possa se proteger. as paisagens exuberantes são ilusões cotadas pelo dólar. o verão vem chegando e hordas hospedeiras se movimentam não para conhecer o outro ausente em seu território, mas para explorar o que sobrou de natural e humano. a cidade parece verde, mas é incolor. invisível, está entregue à cultura da especulação e de beach clubs que exalam sexo forçado. a cidade é mesmo a grande ilusão de todos os tempos.

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escrevo bobagens enquanto espero dar a hora de sair penso em uma ou duas alternativas cuidar de plantas e estudar a vida das saúvas lembro das notícias que não param de chegar o fluxo do pensamento lá longe e uma certa secura na boca como se alguma coisa inevitável estivesse pra acontecer cravo os olhos nos frames vídeo meme letras estremecidas no papel amarelado o tempo enfraquece o olhar mais a gente pode ver até mais ou não a juventude que desbota nem sempre parece madura o suficiente pra fazer parte do seu tempo aí estamos nós atordoados como se o homem estivesse encapsulado num passado que não mais lhe convém há uma chance de se ser aquilo que a gente nem sabia que era possível mas pra isso é preciso engolir sem água e sem pena de si mesmo a pílula que te reflete no espelho.

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eu entrego o corpo à experiência como um caminho por onde cruza uma linguagem. é uma maneira de me comunicar com o que é desconhecido. como se fosse uma mediunidade sem a mística. é contemplação, mas também ação e força. é como uma entrega que precede a consciência enquanto enxerga o que está por vir. apagamento, memória, transe, deja vu. eu ouço o que se diz no silêncio; quase dá pra tocar. eu leio letras borradas em linhas turvas e é nessas margens que o ente escondido se comunica comigo. nem sempre sei interpretar. às vezes, é um feixe de luz ou um véu que flutua na escuridão. ou um viajante enrijecido vagando pelo mundo, empinando o peito e dando coice no ar. no limite do corpo, meio aceso, meio apagado, é que eu escuto. nem mais, nem menos. só o possível e o original. é como se fosse mediúnico, mas é só o corpo que se deixa levar pela estranheza dessa matéria invisível: anima que nos coloca em contato.

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