as palavras que faltam agora querem dizer um pouco menos do que já disseram. falta a elas uma energia de quem se consome ao mesmo tempo que se satisfaz. o silêncio absoluto enquanto se imagina um passar de dedos entre os cabelos ou um simples gesto de presença a quem possa interessar. uma chegada cheia de cansaço ou uma calma viciante que dá vontade de chorar. é como trocar toda a volúpia do mundo - por livre e espontânea vontade - antes mesmo de dizer adeus às coisas que faziam o corpo e o espírito alucinar. uma vida nova sem começo que agora parece um fim cheio de esperança. esperança... sempre me irritei com essa palavra, talvez porque ela tenha um tom de utopia (o que, em contradição, me agrada pensar) ou um compasso de covardia (foi o que sempre acreditei!). tenho ainda toda a esperança do mundo de ver o sol no oceano ou caminhar por uma rua desconhecida que me leve de volta a qualquer canto que pareça um lugar de conforto. as palavras dizem pouco, as presenças são equivalentes ao tédio, o horror corre solto. mas, bem no ínfimo em que se encontram estes eus perdidos e solitários, parece haver uma vontade de que aconteça algo incapaz de ser visto a olho nu. as palavras que faltam são, enfim, a chegada daquilo que não é preciso dizer.

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a poesia é uma chance

de contar com algo

que sempre esteve ali 

mas não se podia enxergar;

uma bola que reluz

sob um céu escuro

à margem de uma massa de água navegável.

 

a poesia é uma gargalhada

que se motiva num infinito tangenciável,

um caminhar ausente entre as luzes da cidade

enquanto um tanto de gente eufórica

se aglomera pelas avenidas.

um ritmo

um doce

uma possível mirada

para o que ainda é possível querer.

 

a poesia é contingente de palavras

amenas quando explode a guerra;

é o que se tem a dizer sem necessidade de explicar.

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Um amigo me enviou uma crônica na manhã de domingo. Eu tenho esse tipo de sorte: curadores atentos me fazem feliz apenas por sensibilidade. O texto tinha a ver com uma conversa da madrugada anterior em que eu dizia não acreditar em muitas coisas, enquanto a amiga interlocutora estava convencida sobre alguma comunicação "entre céu e terra". Eu não. Não tenho fé, assim como não gosto de cultos a personalidades e também sou avessa aos deslumbramentos que não sejam por paisagens naturais, ou claro, boas conversas e uma comida ou bebida saborosas.

A crônica enviada pelo amigo no domingo de manhã trazia consigo uma possibilidade: uma escrita passível de me deslumbrar. "Rir. Nadar. Cozinhar para os amigos. Dançar", dizia em tom de alívio. Talvez, eu diria também, que há um doce deslumbre em ouvir um bom instrumental, escrever uma poesia, apreciar a arte sem indústria, andar pela contramão em tempos de ódio e ignorância. Ter com quem contar. Ainda escrevermos a lápis em um bloco de notas. Ter coragem de viver para amar uma filha, um gato ou um banho num mar revolto e longe de casa. Da pra se deslumbrar com pouco e esperar o fim sem se lamentar tanto. Acho que está nisso o aprendizado dos últimos tempos.

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às vezes, nem posso acreditar em quem eu sou, talvez porque meu corpo pareça ter sido muitos ao mesmo tempo que tudo parece ter começado só hoje pela manhã. empilhadas umas sobre as outras - toda essa gente lá fora -, umas vomitando de tanto se envenenar, outras que colocam um tampão no umbigo. às vezes, é de perder a vontade de habitar o mesmo mundo, hordas de deslumbrados prosperando como a fome na guerra. é difícil lembrar que eu até já escrevi uma carta para um pássaro, um anjo ou até cantei no coro infantil. como pode a menina sempre ser a mesma ainda que desiludida. como ter certeza de alguma coisa quando o mundo se esfacela bem debaixo dos pés de toda a ignorância, dessa montanha verde e iluminada que ainda nos serve de consolo. olhando de cima parece que falta pouco para chegarmos a este não-lugar onde os sentidos desbotam deixando turvo o olhar de quem ainda acorda, lê um livro e toma café. agora apenas somos nós, marchando pelas avenidas motorizadas, zumbis desesperados vagando em busca do salário mensal. eu tenho pena de vocês, mas até menos do que já tive de mim mesma, ou pior, de quem ainda nem chegou. procriar é a pior maneira de errar com o outro que está por vir, essa é a culpa invariável da mãe. um dia, quem sabe, a paz deixe de ser uma placenta e se torne a última criança entre toda essa gente que ainda insistimos ser.

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