A delicadeza despretensiosa da flor que se submete a este mundo. A natureza sempre se recupera enquanto violamos a nós mesmos. Um ir e vir de vida em confronto com a morte; mil pedras pelo caminho. Gelo, vento, aridez, explosão. Um mundo inteiro sufocado por esta (des) humanidade que se apavora com o simples e o original. A delicadeza que expulsa tudo que é desimportante: existência inacabada e findável que se espalha na ignorância. Cavar um buraco, enterrar-se e retornar. Quase como voltar para o útero materno, mas cheio de culpa. Ter paz, enfim, nessa fissura; passagem que nos suga para o centro e nos reabilita. Ou a delicadeza violenta da flor que mantém-se viva, por gerações de pétalas, habitando este jardim de eternas desilusões onde nos assentamos. E, ao cabo de toda a força - e de a toda a sujeição de nós mesmo -, não somos sequer uma gota no oceano; rastros de poeira abandonados pelo que ainda está por vir.

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ver-se de perto e suportar

a perda do significado da palavra

o dito que se deixa para trás

como uma lágrima que escorre sem se arrepender

aceitar-se como apenas um corpo

e fazer dele somente passagem

um autoexperimento que, contraditório,

precisa de um outro

expandido e refratário

que oferece uma rota

um trajeto torto

ou qualquer densa dor que

quando mutila o corpo o refaz

um retorno ao selvagem e original

uma ruptura de nós mesmos

simples assim, numa noite amena

encontrar descanso e consolo no entregar-se

romper, enfim, este silêncio feito de riso, saliva, gozo

para expandir-se também

e achar-se outra vez.

 

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sempre voltamos atrás: não tente negar. sempre voltamos a algum ponto de dor, dúvida, amor... e nem se sabe disso, mas é amor. um eterno ir e vir sem pena ou perdão, simples assim - ver-se como nunca antes. azul, vermelho, amarelo, rosa, verde, lilás. tanta significância sem significado. o cansaço é geral e nem dá pra pedir pelo amor deus. uma película bem fininha, um filme que retém quem se era e ainda é ou o que será de nós porque ninguém é capaz de apagar tudo isso e seguir só. significa, relê, atualiza, pede para partir, mas apaga. uma fita, uma vela, um nome gravado que não se dispensa nem se sobrepõe. a igualdade que ignora o desejo de quem mata. dor e choro, calor e uma certa obstrução dessa passagem que nos carrega pelo tempo. o tempo vazado, desconexo e inevitável. ninguém se sobressai àquilo que não sabe, mas se faz ser. a linguagem é um avião em pleno voo próximo a colidir. quem cai, quem acorda depois do tombo? quem não se dá conta tem mais condições de suportar. cantar, sorver, gritar, morrer, verbos obedecendo a conjugação. o que é afinal conjugar? combinar, condizer, coincidir. ou julgar com o outro na falta do que fazer. sei lá, aceito o movimento e escrevo o que tenho vontade de cuspir. é insuportável a mais valia, a mitagem ou a autoexigência. a linguagem exacerbou, assim, bem banal, mas alegre, enquanto vamos dormir tristes, ou descrente, ou ainda com uma convicção obsoleta: não se sabe quem é quem e a miragem é de tumulto. uma flor despetalada antes de qualquer primavera.

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nada que se diga é coerente com a cabeça que se deita no travesseiro, atravessa a noite, sonha e ri, mas não se despede. o eterno retorno, como fosse uma maldição. o dia se repete e se repete e se repete: dormir, acordar, pressentir e nada acontecer. esperar é sempre uma desmotivação, um cálice seco calando o desejo submetido à regra, ao tédio, ao dessabor de habitar este tempo que, embora tenha nos dado muito, nos tira em dobro. o conserto da casa, a falha nos ombros, o terror noturno do envelhecer sem ruptura. a pele que vai se abandonando aos poucos, secando com as dezenas de anos empilhados pelo vento. a aurora que agora é fosca, todas as praias que já não são mais desertas, a capacidade da moeda de fazer tudo parecer importante. o consumo, sempre o consumo, o açúcar, o café, o cigarro. a dose no copo, o vício, a loucura e o arrependimento. tudo de novo, sem sequer haver sentido. o que se sabe, o que se viu e o que se estica como uma esteira sobre a areia branca, o mar poluído, as avenidas ensurdecedoras, absolutamente tudo é banal e banaliza os corpos. as possibilidades de mudança são escassas, a vertente da luta embandeirada virou piada, os corpos seguem amontoados e ainda estamos aqui, chorando a grande guerra enquanto as bombas explodem em nossos pés nas periferias do mundo. quem, afinal, seremos no findar do século: grão, poeira, semente estéril? um adeus profundamente triste, contingente de todas as explorações que agora suplicam piedade a robôs, também estéreis, que nos fazem desistir de nós. o excesso massificado, enlatado, plastificado. a toxina botulínica, o arrebatamento, as mágoas, tudo que se possa vender e dar desconto, o frete é grátis. a doença é psíquica e alucinante. como ainda podemos crer em algo depois de tudo?

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