A ideia incontestável e o desejo de aniquilação do outro é a trapaça do sentido da palavra. Talvez, porque se quer calar o horror que é ver-se tão de perto, lá onde as aparências já não conseguem esconder este demônio que também nos habita. Tripudia-se de uma moralidade para se estabelecer tão violentamente moralista em outra. 
 
Somos um eu cada vez mais solitário ou, mesmo que sejamos um nós, nada além de um conjunto encerrado em si mesmo que absolutiza verdades: uma vaidade que não nos leva a lugar nenhum. Assim como doer-se de si mesmo, enraivecer-se, culpar o mundo e se vitimizar é um processo inescapável, mas inútil se não seguimos em frente.
 
Quem sabe estejamos aqui para suportar o que perdemos e nos reinventarmos na aproximação, na singeleza das coisas que não podemos tocar, mas podemos dizer. E sem ter o que perder, se permitir a um aprendizado lento e incompleto, até que seja possível recuperar uma faísca embandeirada, um deleite inteligível para transformar tudo aquilo que arranca de nós a humanidade.
 
Escrever um comentário (0 Comentários)

Aflorar-se em girassóis na virtude do dia, e deixar-se ir como a poeira cintilante iluminada pelo sol da manhã. Um lar pantanoso ou jardim, leito caudaloso em que o corpo se entrega sem pena de si. Assumir-se como fenda por onde brota o desejo, a inveja e a flor. Deixar-se ver à luz de toda a ausência, crua como a falta daquilo que se desconhece. Entregar-se à simplicidade e ao original e, enfim, aceitar-se como um ente que sabe apenas que chora e ri. Ser não mais que um sopro de vida que dança na sutura do tempo. Completar-se no que está por vir.

Escrever um comentário (0 Comentários)

A delicadeza despretensiosa da flor que se submete a este mundo. A natureza sempre se recupera enquanto violamos a nós mesmos. Um ir e vir de vida em confronto com a morte; mil pedras pelo caminho. Gelo, vento, aridez, explosão. Um mundo inteiro sufocado por esta (des) humanidade que se apavora com o simples e o original. A delicadeza que expulsa tudo que é desimportante: existência inacabada e findável que se espalha na ignorância. Cavar um buraco, enterrar-se e retornar. Quase como voltar para o útero materno, mas cheio de culpa. Ter paz, enfim, nessa fissura; passagem que nos suga para o centro e nos reabilita. Ou a delicadeza violenta da flor que mantém-se viva, por gerações de pétalas, habitando este jardim de eternas desilusões onde nos assentamos. E, ao cabo de toda a força - e de toda a sujeição de nós mesmo -, não somos sequer uma gota no oceano; rastros de poeira abandonados pelo que ainda está por vir.

Escrever um comentário (0 Comentários)

ver-se de perto e suportar

a perda do significado da palavra

o dito que se deixa para trás

como uma lágrima que escorre sem se arrepender

aceitar-se como apenas um corpo

e fazer dele somente passagem

um autoexperimento que, contraditório,

precisa de um outro

expandido e refratário

que oferece uma rota

um trajeto torto

ou qualquer densa dor que

quando mutila o corpo o refaz

um retorno ao selvagem e original

uma ruptura de nós mesmos

simples assim, numa noite amena

encontrar descanso e consolo no entregar-se

romper, enfim, este silêncio feito de riso, saliva, gozo

para expandir-se também

e achar-se outra vez.

 

Escrever um comentário (0 Comentários)
Carregar mais